O ministro das Finanças e os gestores das principais empresas cotadas em bolsa aterrarão por estas horas em Nova Iorque para tentar convencer os investidores de que o mundo não mudou assim tanto. Fernando Teixeira dos Santos terá uma oportunidade única para tentar explicar, em pleno centro financeiro do mundo, o programa de austeridade e de arrumação das contas públicas. Já os chairman e os CEO das maiores cotadas do país quererão provar que, apesar da ameaça de nova recessão que paira sobre a economia nacional, continua a ser atractivo comprar acções das suas empresas. Não basta desejar- -lhes sorte. Os investidores institucionais instalados em Wall Street são interlocutores exigentes, não se convencem com o tipo de mensagens que o primeiro-ministro e o seu ministro das Finanças têm deixado por cá. E são de um pragmatismo assustador, não toleram a indecisão, a dúvida e muito menos a confusão, que tem reinado ultimamente pelo país.
E quando compram participações no capital de uma empresa, o objectivo é muito claro: fazer dinheiro, no curto, médio ou longo prazo. A racionalidade do investimento impera (quase) sempre na decisão. A estratégia de vida pesa na análise, mas as mais-valias potenciais são indiscutivelmente o que mais conta para estes investidores, que quando não entendem o que se passa tendem a afastar-se. E é isso que torna ainda mais difícil a vida a Zeinal Bava (PT), a Carlos Santos Ferreira (BCP), a Francisco Lacerda (Cimpor) ou a António Mexia (EDP).
Um exemplo. A PT recebeu há pouco mais de uma semana uma oferta da Telefónica, que quer comprar a metade portuguesa na brasileira Vivo por 5,7 mil milhões de euros. No final da semana, alguns jornais espanhóis falavam da possibilidade de a parada subir até aos 8,5 mil milhões. O primeiro preço foi rejeitado unanimemente pelos accionistas de referência da PT, que detém um terço do capital, mas até que ponto uma proposta melhor poderá ser ignorada? Cerca de 60% do capital da operadora nacional está nas mãos de fundos internacionais, com lógicas de investimento tão diferentes das de um BES, de uma Ongoing ou de uma CGD. A existência de uma goldenshare do Estado, então, é encarada com desconfiança, se exercida, é abominada. A Vivo é um activo precioso, é o que distingue a PT da Sonaecom, o que a transporta para além do local, mas a não é uma Media Capital. Qualquer interferência soará tanto quanto o sino da abertura de sessão na New York Stock Exchange, que os gestores portugueses terão direito a tocar amanhã.
Mas o ataque espanhol à PT é apenas um hipotético exemplo do que pode afastar os investidores institucionais. Outro, a Cimpor. Conseguirão os gestores de uma das maiores cimenteiras do mundo explicar as recentes alterações que ocorreram na sua estrutura accionista, bem como qual é o papel da CGD, o banco do Estado, neste processo?
Ao ministro das Finanças e aos gestores do PSI não basta, por isso, mostrar em Nova Iorque metas de défice ou de dívida.
O que corre nas veias dos portugueses? Será mesmo sangue? O despropósito surge porque, no curto espaço de uma semana - num ápice -, o país foi confrontado com um duro plano de austeridade - palavra educada! -, e a vida parece ter continuado como se nada de importante tivesse mudado. O governo que jurou a pés juntos, apenas há seis meses, que não aumentaria impostos juntou-se ao maior partido da oposição, aquele que prometeu que jamais aprovaria medidas que resultassem num aumento da carga fiscal, e anunciou um grave aumento de impostos. Que não poupará ninguém, nem mesmo os mais pobres, que fazem - mesmo! - contas ao preço do pão. Ouviram-se, talvez, uns queixumes a mais, a ladainha de sempre, mas mais nada, como se nada de particularmente relevante tivesse ocorrido nos últimos dias. O que ressoa são as vozes do costume, dos que garantem, sem qualquer ponta de dúvida, que tem de ser assim, que o país não tem saída, que foram Bruxelas, Sarkozy e Merkel que nos impuseram um espartilho mais apertado, e que já nem o governo pode fazer nada, que é o preço a pagar se quisermos dar um futuro melhor aos nossos netos. E também ainda se ouvem os elogios ao esforço de Teixeira dos Santos, à inesperada sensatez de Passos Coelho e à preocupação de Sócrates, que, à última hora, conseguiu poupar as PME com uma facturação inferior a 2 milhões de euros da taxa acrescida de IRC.
É capaz de ser sangue o que nos vai nas veias, mas não deve ser lá grande coisa. Basta ler o o mea culpa de Luís Amado, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, ontem em entrevista ao "Diário Económico": "Ao longo da última década não fizemos o que deveria ter sido feito [...] Deveríamos ter sido mais rápidos na última década a fazer reformas estruturais que garantissem a competitividade da nossa economia sem a alavanca da desvalorização monetária. Esse conjunto de reformas estruturais foi sendo adiado porque tivemos governos relativamente frágeis desde o início do euro." Pois é, a verdade é tão simples. Os governos não fizeram nada, nem os seus, caro ministro de Estado, e agora não há mesmo nada a fazer. Mesmo que o sangue fosse de jeito e chegasse a ferver, não valia a pena. Não há greves, manifestações ou sequer um "direito à indignação fiscal" que nos valha, agora há que trabalhar muito e, pelo meio, tentar gerir danos, perder o menos possível. E, imperioso, nunca esquecer o que se passou, guardar num lugar precioso da memória, o que nos está a acontecer. Este silêncio não pode significar que todos passámos um cheque em branco ao governo, a este e aos que estiverem para vir. Os sacrifícios que agora nos preparamos para aceitar, porque não temos alternativa, devem ser sentidos como uma transfusão de sangue, do mais saudável. Se assim for, estaremos mais vivos para fiscalizar os governos e para lhes exigir melhores políticas. Mudem a Constituição, imponham um limite à alemã para o défice público, entusiasmem-se com o que quiserem, mas preparem-se para um povo de sangue novo. Hoje Sócrates falará ao povo, através de uma entrevista à RTP. Que evite repetir que o país é o campeão do crescimento, é falso, soa a insulto e pode deixar-nos sem pinga de sangue.
Cavaco Silva garante que sabe muito bem aquilo que está a fazer e, por isso, apela a um voto de confiança no nosso - seu - ministro das Finanças, a propósito das novas metas do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) e da capacidade do governo para as executar. O Presidente não pediu que o país confie no governo porque simplesmente não pode apelar à confiança em algo que está partido (faça zoom nas páginas 14 a 17). Se o tivesse feito, os portugueses seriam chamados a confiar em quem? Nos que estão contra a suspensão, o adiamento, a reavaliação - o que se lhe quiser chamar - das grandes obras? No primeiro- -ministro, que no final de Abril - há menos de duas semanas -, em pleno debate quinzenal, enchia o peito para dizer que rever o plano de investimentos públicos era "uma fantasia que não tem a menor correspondência com a realidade"? Disse mais: "Eu sigo o meu plano e não me impressiono. O pior que pode acontecer a um político é quando tem um plano pensar mudá-lo quando encontra uma dificuldade". Que risco pedir aos portugueses que confiem neste primeiro-ministro, o mesmo que agora - não passaram sequer duas semanas - reviu de alto a baixo o seu plano de investimentos públicos. Está tudo dito, é desnecessário relembrar outras contradições de José Sócrates sobre as grandes obras. Muitas e num curto espaço de tempo.
Cavaco confia em Teixeira dos Santos, já deu disso provas várias vezes, fez até questão de ouvir o ministro em Belém e, só por isso, pode pedir o mesmo aos outros.
Fernando Teixeira dos Santos conseguiu dizer o que pensa sobre o tema dos grandes investimentos sem embaraçar o primeiro-ministro, ainda que a sua contenção lhe tenha custado o incómodo rótulo de desautorizado. Conseguiu aguentar as vacilações de Sócrates, numa habilidade de palavras, colocando à vista de todos as divergências no seio do governo sem, no entanto, escancarar as portas. E, pelos vistos, com resultados. O novo aeroporto de Lisboa foi adiado, a terceira travessia sobre o Tejo também, do TGV manteve-se o troço Poceirão- -Caia e estão sob análise eventuais cortes noutros projectos. Teixeira dos Santos desejaria tanto o investimento público quanto o PCP, cuja reacção ao cancelamento das obras foi no mínimo hilariante. Não há governo que dispense esta forma de estimular uma economia estagnada, a não ser quando os perigos são demasiado evidentes. Mas nem todos perceberam que o país tem de mudar de vida. Portugal está demasiado endividado - o Estado e, sobretudo, as famílias e as empresas - e depois desta convulsão nos mercados o custo da dívida disparou. Não é de hoje que se sabe que já não vivemos no tempo do crédito fácil e barato. Ouça-se Cavaco Silva, três frases: 1. "Faz sentido, neste tempo, reexaminar os investimentos públicos e privados na área dos bens não transaccionáveis que sejam capital-intensivo tenham uma grande componente importada"; 2. "A nossa recuperação económica só será duradoura se se reduzir as necessidades de financiamento externo"; 3. "É nas comunidades locais e nas PME que pode estar a fonte duradoura da nossa recuperação económica." Chega? É que, neste caso, o Presidente da República sabe o que está a dizer. Seria bom que José Sócrates ouvisse, mostrasse convicção nas decisões e que confiasse sem hesitações no seu ministro das Finanças. Não nos podemos dar ao luxo de ter um primeiro-ministro que governa ao sabor das pressões dos mercados e das opiniões que muitos decidiram tornar públicas, como Vítor Constâncio ou Jean-Claude Trichet.
Não, não é instinto maternal, não há pinga de emoção, é antes uma convicção assente em coisas prosaicas. Mas é inédito. A vida dos nossos filhos dificilmente será melhor que a nossa. Pode dizer-se que sempre foi assim, que os nossos pais e avós também sentiram o mesmo, que não há como escapar ao medo e à incerteza em relação ao futuro. Mas não, infelizmente, os dados existentes são suficientes para antecipar um futuro seguramente diferente e muito mais difícil. Como disse tão bem o historiador Rui Ramos, em entrevista ao i publicada no sábado: "Quem é jovem em Portugal hoje em dia, quem tiver 15, 18 ou 19 anos, a sensação que terá é que chegou no fim da festa e vê os mais velhos a guardar as garrafas de champanhe e os restos dos cocktails e dos bolos, há fitas pelo chão, mas a festa acabou." "E ainda por cima, não é só limpar os restos da festa, como pagar a festa, que é outra coisa que nós lhes reservámos. A conta da festa das gerações anteriores. Têm de pagar a nossa saúde, as nossas pensões..." Isso tudo, os nossos excessos, os que já fizemos - não há volta a dar - e os que viermos a fazer. Para isso, poderemos contar com os nossos filhos, sim, porque nós já não temos um tostão, só dívidas, e continuamos a viver do crédito para pagar as contas do dia-a-dia. Bela prenda, cheia de obrigações e menos direitos.
O mais fácil é dizer que é o costume, são sempre os mesmos!, acusar os críticos de pessimistas, de não fazerem mais nada além de dizerem mal, esquecer e continuar que os dias não são nada fáceis, já bem bastam os jornalistas que nunca encontram nada de positivo no país, que cansativos!, em vez de ajudar, não, parece que gostam de enterrar mais um bocadinho, e as notícias, que maçada!, desgraça atrás de desgraça... É, aliás, por causa desta espécie, não há meio de a extinguir - morre tanta gente boa todos os dias... -, que, passadas décadas de debate e discussão, estudo para cá, estudo para lá, ainda aqui estamos e o país não tem Alta Velocidade. E são esses, os mesmos de sempre, os incapazes de entender a aposta nas infra-estruturas que aproximam Portugal do centro do universo, a ferramenta para aumentar a nossa competitividade, são estes, esses mesmos, que querem agora, mais uma vez, barrar o indispensável TGV. E quem diz o comboio, diz a terceira travessia sobre o Tejo ou o novo aeroporto de Lisboa. E a chatice é que não param de crescer e de incomodar o governo, que tem o trabalho todo feito, estudos de perder a conta, um orçamento, um PEC e, nunca mas nunca esquecer, uma inefável determinação e uma absoluta certeza de que há obras que não são daquelas de suspender ou adiar, quando muito podem ser reavaliadas desde que tudo fique na mesma, pronto a avançar. Um troço, uma auto-estrada, ainda vá lá, agora um TGV, por amor de Deus! Será que esses, os tais, não entendem que foram assumidos compromissos com empresas - sim, é verdade, as do costume - e que a palavra ainda tem valor nos dias que correm?
Enfim, muito mais teria para dizer, do fundo do coração, uma mãe que não percebe nada de ferrovias, mas que tem todas as dúvidas sobre a definição de prioridades do governo, que gostaria de perceber como é que se quer fazer meio mundo acreditar que sem estes investimentos o país pára, como é que, assim, alguma vez se fará de Portugal um país exportador - não são as exportações, a salvação da economia? - e que tem uma única certeza: não temos dinheiro, logo, não precisamos de TGV, NAL e TTT. Quem sabe mais tarde, depois de se começar a tratar bem as famílias. Afinal, o compromisso do país não é com as empresas do costume.
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