Foi preciso a Standard & Poor's baixar o rating para o nível mais baixo de sempre e que os juros da dívida pública atingissem o recorde de 13 anos. Foi preciso chegar ao estado de uma confrangedora debilidade face aos mercados internacionais. Foi preciso perder tanto tempo a culpar os especuladores - que sempre existiram -, para que o governo e o PSD anunciassem que vão trabalhar juntos na redução do défice e da dívida pública, ou seja, na execução do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).
Só agora, chegados a este ponto, Sócrates e Passos Coelho marcam um encontro de urgência, como se se tratasse de um nobre feito. Como se há muito não estivesse em causa a sobrevivência e o futuro do país, como se alguém alguma vez pudesse ser teimoso ou irresponsável ao ponto de comprometer qualquer ponta de solução, como se nenhum dos dois não tivesse já entendido há séculos que se tomasse outra atitude estaria a dar tiros nos próprios pés.
Explicada a inevitabilidade do sucedido, reconhecida a importância de um acordo entre o governo e o PSD, há que dizer que é isto, para já existe só e apenas isto. No final do encontro em São Bento, Sócrates e Passos Coelho não apresentaram uma "mão cheia de nada", como disse Vieira da Silva a propósito do PEC do PSD, mas quase. A verdade é que o primeiro-ministro não deu uma única novidade aos mercados e aos portugueses. Nada de novo. O que seria de estranhar é que não existisse já um acompanhamento regular e intenso da situação financeira internacional. O anúncio de que isso vai passar a ser feito não é uma decisão que se anuncie depois de uma reunião de hora e meia entre o chefe de governo e o líder do maior partido da oposição.
E não vale dizer que se vai antecipar para 2010 medidas que só estavam previstas para mais tarde, e depois elencar meia dúzia de coisas que acabaram de ser aprovadas no último Conselho de Ministros ou anunciadas há dias pelo ministro Teixeira dos Santos. A taxa de 20% sobre as mais-valias em bolsa, o novo escalão de IRS de 45% para rendimentos acima dos 150 mil euros, a introdução de portagens nas Scut e as mexidas nas regras das prestações sociais não retributivas, bem como no regime do subsídio de desemprego estavam decididas e prontas para avançar quanto antes.
Nada de antecipação, zero de reforço, que fique claro. O que Sócrates - e Passos Coelho também - deixou foram apenas palavras, intenções e compromissos: que o governo está determinado a fazer tudo, mas mesmo mesmo tudo o que for necessário para que o défice se situe em 2013 abaixo dos 3%; que este é um país que cumpre os seus compromissos e que nunca desistiu da sua credibilidade internacional; que o governo está disponível para considerar as propostas feitas pelo PSD.
Não chega. Os mercados e os portugueses aprovam sentimentos como a determinação, mas já estão cansados disso. Registam o dar a face e voltar atrás de Passos Coelho, mas tão-pouco lhe dão grande relevância. Apreciam sinais de entendimento político, mas também não se contentam com anúncios de alianças. Aquilo que os mercados valorizam não é o Sócrates- -determinado nem o Passos Coelho-responsável, são, isso sim, resultados. E até agora, disso nem sinal. Dizia ontem Passos Coelho: "Não precisamos dizer mais hoje senão isto." Está muito enganado.
Há leituras para todos os gostos, a mais à frente é aquela que interpreta o discurso do 25 de Abril de Cavaco Silva como o lançamento da campanha à sua recandidatura nas eleições presidenciais de 2011. Pois, que seja. De facto, Cavaco não voltará a ter, neste mandato, muitas oportunidades de falar com tanta pompa e circunstância a tantos portugueses. Sim, qualquer analista político conseguirá justificar, uma a uma, as ideias e as palavras de Cavaco e analisar a sua intencionalidade e eficácia no campo da táctica eleitoralista.
Mas não é isso que interessa agora às pessoas, que ainda atribuem, sobretudo com o país neste estado, uma atenção especial ao que diz o Presidente num momento tão solene. Mesmo num dia em que só se pensa no Benfica. De pré-campanhas, campanhas e eleições estão todos fartos. Como disse Cavaco, e bem, "os portugueses perguntam-se todos os dias: para onde estão a conduzir o país? Em nome de quê se fazem todos estes sacrifícios?". São as respostas a estas questões que podem tranquilizar e transmitir a tão desejada confiança às famílias e às empresas.
Ninguém estava à espera que as soluções surgissem embrulhadas no meio dos discursos do Dia da Liberdade, nem que fosse Cavaco a responder àquilo a que o governo de Sócrates ainda não conseguiu dar resposta credível e definitiva. Mas esperava-se, isso sim, que o Presidente aproveitasse a ocasião para dizer coisas importantes.
Falou directamente a António Mexia quando voltou a interrogar-se sobre se os rendimentos dos gestores das grandes empresas não serão muitas vezes injustificados e desproporcionados face aos salários médios dos seus trabalhadores. Falou ao governo quando defendeu que a periferia - que já não se mede em quilómetros - "está onde mora a ineficiência do Estado, a falta de excelência no ensino, a ausência de conhecimento, de inovação e de criatividade [...], o atraso competitivo." E claro, falou ao primeiro-ministro, quando atirou sem clemência: "A injustiça social cria sentimentos de revolta, sobretudo quando lhe está associada a ideia de que não há justiça igual para todos."
Cavaco falou a muita gente, disse coisas acertadas, que existe vida para além de Lisboa, mas esqueceu-se do essencial, do que o país mais precisa - uma estratégia de médio e longo prazo e de governos que a executem até ao fim, sem mandar abaixo o pouco que vai sendo feito. Cavaco falou, encantado, sobre o mar, a necessidade de Portugal repensar a sua relação com "um activo económico maior do nosso futuro", mas esqueceu que essa conversa, como tantas outras, já é velha. Os nossos problemas, infelizmente, são e continuam a ser os do costume. No final da década de 70, antes de Portugal entrar na então Comunidade Económica Europeia (CEE), a falta de competitividade já era apontada como uma das principais falhas da economia nacional. Cavaco falou, falou, mas esqueceu-se de dizer o mais simples, que em Portugal os governos, incluindo os que ele próprio liderou, pouco governam.
É compreensível a crescente indignação que se sente no país, à medida que se intensificam os presságios de que, depois da Grécia, será a vez de Portugal sucumbir ao estado de falência. É uma palavra pesada. Quem é que empresta dinheiro a uma economia incapaz de honrar os seus compromissos? Dispensam-se, por isso, os presságios que têm sido atirados com tanta insistência, tanto mais que se sabe que só contribuem para piorar a situação e alimentar o vampirismo dos mercados.
Mas quando o nome de Portugal é pronunciado com tanta frequência e por economistas de referência, como o coerente Joseph Stiglitz, dá que pensar. O que o governo nos diz sobre as contas portuguesas, défice e dívida já é suficientemente preocupante. Estado, empresas e particulares estão tão endividados que vivem no fio da navalha. Até os custos do acordar de um vulcão na Islândia vão pesar, e de que maneira. Mas e os números apresentados por Sócrates e Teixeira dos Santos serão reais? A dúvida instala-se e não é simples dar cabo dela, sobretudo quando o passado recente descredibiliza. Antes das eleições, o défice orçamental era inferior a 6% e passados poucos meses já é de 9,4%. Será?
É fácil criticar os que falam de Portugal como a próxima vítima e acusá-los de profetas da desgraça. É fácil desdenhar do presidente checo e apontar-lhe o desplante ou a falta de educação na provocação que fez a Cavaco Silva em Praga, faz sentido duvidar das contas fantasiosas de alguns articulistas estrangeiros e questionar os seus verdadeiros interesses, é normal culpar os grandes investidores, que todos os dias procuram nas fragilidades das empresas, mas neste momento sobretudo dos Estados soberanos, a melhor forma de ganhar dinheiro, é admissível desvalorizar a relevância dos CDS (credit default swaps), que estão longe de ser um indicador credível de aferição do risco de dívida, e faz parte atirar com teorias mais ou menos conspirativas à volta de um tentativa de atentado norte-americano ao projecto do euro. Tudo, mas mesmo tudo, é legítimo para quem está de mãos e pés atados e ainda por cima se sente injustiçado.
Mas e este tipo de reacção terá alguma utilidade? Porque é só isso que importa saber. Mais do que gastar energia a chamar ignorante aos que têm opinião sobre o estado da economia portuguesa e decidem publicá-la, o que verdadeiramente deve preocupar o governo é apresentar factos, mostrar acção, depois de, claro está, assumir com clareza e verdade as debilidades da economia. Não há mal nenhum em assumir fraquezas que estão à vista de todos, mau é não mostrar determinação na solução para o problema e, pior, um perfeito desastre, não fazer nada ou ser demasiado lento na tomada de decisões. Os mercados enganam-se muitas vezes, não querem saber se são justos ou não, nos mercados aposta-se e ataca-se. E não é a Irlanda, é Portugal um dos alvo escolhidos por quem está habituado a explorar as frinchas. Por algum motivo será: o governo irlandês ainda não parou.
Está tudo nas mãos de Sócrates, que sabe bem o que tem a fazer. Já não vai lá com agências de comunicação e roadshows, nem com planos de intenções. O Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), por exemplo, ainda não passou disso mesmo.
E se os títulos das notícias de hoje dissessem: "Palha da Silva será o novo presidente da Cimpor"? Ninguém acreditaria. Neste país - noutros também, mas para o caso pouco interessa -, o governo mete-se em tudo, até na escolha dos líderes das empresas privadas. Garante que não, mas de pouco vale, também já ninguém acredita. O relato do que terá acontecido nas últimas semanas, à volta da constituição da lista para os novos órgãos sociais da cimenteira, é verdadeiramente confrangedor.
Neste país - muito para além do extraordinário -, dizem-nos que Luís Palha da Silva, um dos melhores gestores portugueses, apesar de não ganhar concursos, não conseguiu reunir o consenso entre os accionistas da Cimpor. E porque será que aquele que era até há bem pouco tempo o presidente executivo da Jerónimo Martins e a quem foi atribuído o sucesso da reestruturação levada a cabo no grupo de Alexandre Soares dos Santos, esse mesmo, o mesmo que já foi administrador financeiro da Cimpor e que, por isso, até conhece o negócio e a empresa, não terá conseguido o apoio da maioria dos accionistas da cimenteira? A resposta não é simples, mas também já não espanta muita gente. Em síntese, existe uma espécie de clube restrito de accionistas das grandes empresas, onde o Estado é membro honorário, tem lugar cativo, impõe códigos e cultiva relações perigosas. E a independência não é, por razões várias, coisa que abunde por aqueles lados.
Palha da Silva passou pelo governo, mas a verdade é que não é do político que nos lembramos quando o seu nome é falado, o que está escrito na sua testa é "Gestor". Mas por ali, não, não são os critérios de boa gestão empresarial os que determinam certas decisões. Os accionistas, é o que parece, estão mais preocupados em gerir o imediato das suas vidas, aceitam aquilo que lhes é sugerido, tanto lhes faz uma primeira ou uma terceira escolha, o que lhes importa é sobreviver num mundo onde a porta das empresas está sempre escancarada para o Estado.
E depois ainda existem os bancos públicos. Segundo consta, Faria de Oliveira, presidente da CGD, não conseguiu resistir às pressões e teve de abdicar do seu homem para a Cimpor, aquele que tinha sido seu secretário de Estado. É assim a vida de um banqueiro deste Estado. Mas ainda há mais para dizer do papel do presidente da Caixa enquanto accionista de uma das maiores empresas industriais do país. Para quem queria ser o rosto da pacificação accionista na Cimpor, para quem desejava contribuir para a estabilidade e solidez da estrutura de capital da cimenteira, só lhe resta parar e admitir que o resultado foi pífio. Depois da oferta pública de aquisição (OPA) lançada pela CSN, basta uma leitura rápida da lista de accionistas para concluir que de estável tem pouco (faça Zoom na página 23).
E, no final, o Estado incontinente ganhou. Castro Guerra, ex-secretário de Estado de Manuel Pinho e ex de outros cargos públicos/políticos - facto de lembrança imediata - será o futuro presidente da Cimpor. Não chega deste governo de Sócrates, tal como Mário Lino, mas do primeiro, não faz parte do círculo de amigos do primeiro-ministro, mas é um rosto do Partido Socialista. Pois, que faça o seu trabalho, que seja um bom gestor e mostre que não é apenas mais um membro do clube dos do costume escolhidos para o topo do clube das grandes empresas. Os accionistas da Cimpor ainda não sabem bem, mas talvez agradeçam.
Não vivemos no meio de uma guerra, apenas de uma crise económica que faz outro tipo de vítimas, e já passaram mais de 50 anos, mas o mundo contado por George Orwell continua assustadoramente actual. O "Livros & Cigarros", recentemente editado pela Antígona, reúne vários ensaios do autor de "1984", um dos quais sobre a liberdade intelectual e a liberdade de imprensa. Apesar de escrito no período da Segunda Guerra Mundial, são inquietantes a actualidade e a oportunidade do texto "A Prevenção da Literatura", publicado em Janeiro de 1946 na revista britânica "Polemic".
Diz Orwell: "O género de coisas que jogam contra ele [jornalista]" é "a concentração da imprensa nas mãos de meia dúzia de ricos"; "A independência do escritor e do artista vai sendo corroída por obscuras forças económicas"; "Os inimigos directos da honestidade e, como tal, da liberdade de pensamento, são os barões da imprensa, os magnatas da indústria cinematográfica e os burocratas"; e "Para exercer o direito de nos exprimirmos livremente, temos de lutar contra a pressão económica e contra franjas poderosas da opinião pública."
Podia ser hoje. Não é preciso pensar muito, basta olhar para os grupos de comunicação social, ver quem são os donos das rádios, dos jornais e dos canais de televisão, o que fazem e ao que vão. São sempre os mesmos, vão e voltam. Têm agendas próprias, cadernos de encargos e interdependências várias. Para além de, claro está, terem de dar lucro e, assim, satisfazer accionistas e, em parte, justificar a sua existência. É variado o que os move e o negócio é muito mais complexo, não vive apenas da verdade nem da liberdade de criticar. O jornalista não é livre e tem consciência dessa ausência de liberdade, segundo Orwell, "quando é obrigado a escrever mentiras ou a suprimir o que lhe parecem ser notícias importantes".
Mas o mais grave, na opinião do autor, é que esta independência é, ao mesmo tempo, "minada por aqueles que deviam ser os seus defensores". Afinal, "os inimigos conscientes da liberdade são aqueles para quem a liberdade devia ter mais valor. Os cidadãos comuns estão-se nas tintas para a questão", nem tão- -pouco estão dispostos a fazer grandes esforços para a proteger, "não há uma corrente de opinião vigorosa".
Orwell olhou à sua volta e citou, neste ensaio, o caso dos cientistas, admiradores acríticos da URSS, que pareciam não encontrar importância na destruição da liberdade, pois o seu campo de actividade não era atingido. "Quando assistimos à indiferença de homens cultos ficamos sem saber o que desprezar mais, se o seu cinismo, se a sua curteza de vistas", diz. Se há quem não se tenha dado conta, basta reler George Orwell: "Qualquer ataque à liberdade intelectual e ao conceito de verdade objectiva ameaça, a longo prazo, todos os sectores do pensamento." Podia ser hoje, também podia ser em Portugal.
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