Cavaco Silva tem todos os motivos para se sentir no mínimo incomodado com a falta de José Sócrates à cerimónia de tomada de posse dos novos conselheiros de Estado e ao encontro semanal com o Presidente da República marcado para a última quarta-feira. O primeiro-ministro pode ter sofrido inúmeros contra-tempos, ter justificação para os consecutivos atrasos da sua agenda para aquele dia, mas deveria ter evitado tamanha balda. No limite, teria sido preferível saltar as jornadas parlamentares do seu partido em Beja para conseguir chegar a tempo a Belém. É que existe um histórico de convivência conturbada com Cavaco Silva. O que José Sócrates fez soou a uma de duas coisas: provocação ou falta de respeito.
Dito isto, trata-se apenas de mais um episódio revelador do estado das relações entre Cavaco Silva e José Sócrates. Por mais comunicados oficiais que se façam, já são poucos os que acreditam na teoria das intrigas insufladas pelos jornais. Está à vista de todos. E, ao contrário do que diz o esclarecimento divulgado domingo pela Casa Civil da Presidência, o relacionamento do Presidente da República com o primeiro-ministro não é do domínio reservado. O clima tenso entre ambos interessa, e muito, a todos os portugueses. E não é só porque no meio de uma crise gravíssima, com um governo de minoria e um ambiente beligerante no Parlamento, um conflito institucional entre São Bento e Belém seria o cúmulo do desastre. Mais grave é que esta situação de conflito só contribui para fragilizar cada vez mais o Presidente da República, para quem os portugueses sempre olharam como porto de abrigo. Sempre que a vida se complicou, que um governo desiludiu e a desconfiança se instalou, as pessoas encontraram no Presidente da República a garantia de que nem tudo estava perdido. Foi sempre assim, mais com uns do que com outros. E Cavaco Silva ainda estará capaz de cumprir essa função, dar alento às pessoas, tranquilizá-las e até inspirá-las, ser o maior mobilizador de vontades e mostrar uma absoluta independência, provar que está livre de qualquer contaminação? A dúvida existe, nasceu com o penoso caso das alegadas escutas a Belém e não parou de crescer com os episódios de tensão entre Presidente e primeiro- -ministro que se lhe seguiram. Cavaco até pode ter razão, Sócrates até pode ser o principal responsável pela inexistência de cooperação institucional ou estratégica entre os dois órgãos, mas não é o primeiro-ministro o maior prejudicado. É a Cavaco Silva que mais dói o conflito, ou antes, aos portugueses, que pela primeira vez podem deixar de contar com o refúgio presidencial.
Já não é de um fantasma que se fala, mas o que paira só Cavaco pode espantar. Mas para isso não bastam palavras, não lhe chega assegurar repetidamente que é o garante da estabilidade, que é o presidente de todos os portugueses. É preciso mais. Terá de evitar deixar-se cair em tentação e ignorar as provocações do governo, mas, mais importante, terá de actuar e mostrar que, quando tiver de agir, nada se sobreporá ao interesse nacional. O diploma que aprovou o fim do pagamento especial por conta - uma iniciativa do PSD - já estará nas suas mãos e resulta numa quebra de receita fiscal de cerca de 300 milhões de euros (faça Zoom na página 22). Cavaco sabe melhor que ninguém o que isto significa para as contas públicas portuguesas. Que fará, desta vez, o Presidente-professor-de-Finanças-Públicas?
Poucas horas depois do ataque dos brasileiros da Companhia Siderúrgica Nacional à portuguesa Cimpor, já Fernando Faria de Oliveira inquinava o único e verdadeiro negócio da bolsa portuguesa nos últimos quatro anos. Desde as ofertas públicas de aquisição (OPA) lançadas em 2006 sobre a Portugal Telecom e sobre o BCP que não se via por este país um negócio de quase quatro mil milhões de euros. O presidente da CGD - o banco do Estado - disse ao "Negócios" que "a Caixa tem vindo a defender a manutenção dos centros de decisão nacional". E já está, em meia dúzia de palavras o negócio entre dois grupos privados cotados em bolsa passou a adquirir uma dimensão política. Faria de Oliveira não fala, obviamente, em nome do Governo, mas aquilo que diz é relevante, porventura mais importante do que o que vier a dizer qualquer outro accionista da Cimpor.
Já está, a dúvida já vive connosco. Irá o Governo de José Sócrates interferir nesta operação? Argumentos não lhe faltam: a Cimpor, uma das maiores cimenteiras mundiais, é a única grande empresa industrial e internacionalizada de um país sem indústria. Armas, tem-nas de sobra: são vários os accionistas importantes da Cimpor capazes das mais diversas provas de lealdade. A CGD é controlada a 100% pelo Estado - o que dispensa explicações - e detém 10% do capital da Cimpor, depois de ter feito um negócio com Manuel Fino para minimizar os danos no seu balanço do dinheiro que este empresário lhe devia. Fino tem uma opção de compra sobre aqueles 10% e ainda detém outros 10% da Cimpor. Mas - há sempre um mas -, depende dos bancos, que financiaram os seus investimentos. A Teixeira Duarte, por sua vez, tem pouco mais de 22,9% da cimenteira e também está longe de nadar em dinheiro. Conta com um aliado financeiro de peso, o BCP. Aliás, as alianças entre estes dois grupos são uma tradição. A construtora de Pedro Maria Teixeira Duarte participou como accionista de referência na luta de poder no maior banco privado português, supõe-se que do lado Jardim Gonçalves. E o BCP, liderado por Santos Ferreira, imagine-se, detém uma posição de 10% da cimenteira, através dos seus fundos de pensões. E já lá vão, mais coisa menos coisa, porque nem tudo é claro neste momento, 40% de capital potencialmente alinhado. Está então claro que não será difícil repelir e anular a ofensiva brasileira sobre a Cimpor. Tudo em nome do desígnio nacional, dos centros de decisão nacional ou do que quer que se lhe queira chamar e que por várias vezes tem levado à mediocridade. No caso da Cimpor, dos males o menor. A cimenteira é um sucesso empresarial. Uma estrutura accionista dispersa não impediu a gestão de executar uma estratégia de crescimento e de internacionalização, e com bons resultados. Isto, até há dois anos atrás. A mistura de accionistas como a Teixeira Duarte, a francesa Lafarge ou Manuel Fino, tornou-se explosiva. Uma espécie de BCP, take II, onde curiosamente coincidem alguns guerrilheiros. Assim, é verdade, a Cimpor não poderia continuar. A ausência de liderança conduziu a empresa a uma perigosa instabilidade que poderia estragar o bom trabalho que foi feito. É nisso que devem pensar os defensores dos centros de decisão nacional. Antes de abaterem brasileiros, franceses ou quaisquer outros investidores estrangeiros, devem pensar no que lá estão a fazer os portugueses e se estes são merecedores do lugar de accionistas. Se a estratégia nacional para a Cimpor for tudo menos brasileira, que seja diferente da portuguesa que lá está. Ou o futuro de uma das melhores empresas do país estará em risco.
José Sócrates terá muitos defeitos, somos até tentados a oferecer-lhe mais, mas, como qualquer pessoa, também tem as suas qualidades. É, por exemplo, muito perspicaz. Por isso já percebeu que o Governo que lidera vai acabar por cair, mais cedo ou mais tarde. Por várias razões, mas sobretudo porque o povo não o deseja, tolera-o. Será então apenas uma questão de tempo, mas nunca de dias ou meses. Não é para já. É por isso que é absolutamente incompreensível a actual estratégia da vitimização e de dramatização. Não faz sentido forçar uma moção de confiança e muito menos provocar já eleições antecipadas.
Alguém no seu perfeito juízo acredita que se o país voltasse às urnas dentro de meses alguma coisa de verdadeiramente importante mudaria na governação? Façamos um pequeno exercício de imaginação: a discussão do Orçamento do Estado para 2010 corre mal, não há acordo com os partidos da Oposição para viabilizar o documento; o PS provoca uma moção de confiança, que não passa; e o país cai em eleições antecipadas, isto lá para Maio ou Junho. Qual seria o resultado dessas eleições? O mesmo de Setembro passado. O PS voltaria a ganhar porque (ainda) não existe alternativa, mas manteria a maioria relativa.
O PSD continuaria como líder da Oposição, podendo apenas verificar-se pequenas alterações na relação de forças entre os outros três partidos com assento parlamentar. Ou seja,
o PS não ganharia nada, não conseguiria a saudosa maioria absoluta, nem tão-pouco veria reforçada a sua legitimidade governativa. Pior, conseguiria irritar ainda mais as pessoas, fartas de eleições e de política merecedora de escárnio.
De que mente brilhante terá então brotado esta ideia de que as eleições antecipadas resolveriam todos os males da governabilidade em Portugal?
Do PS, parece impossível. Do PSD, que assim tentaria conquistar o poder? Inverosímil. O PSD não tem liderança e não se prevê que a chegada de um novo líder se resolva
a tempo de um confronto eleitoral na Primavera do próximo ano. Mas, ainda que a necessidade aguçasse o engenho entre os sociais-democratas, é relevante perguntar qual seria o líder. Uns não são simplesmente capazes de derrotar Sócrates, outros não estão dispostos a enfrentar agora o primeiro-ministro e arriscar ficar-lhe com o lugar num momento em que vai ser necessário sujar as mãos co- mo há muito não era preciso.
Não, não é agora que Sócrates cai. O Governo e a Oposição estão condenados a entender--se e a negociar, o Orçamento do Estado vai acabar por ser aprovado, com uns jeitinhos à direita e à esquerda. Digamos que este capítulo faz parte da história, é importante, mas não será uma daquelas partes inesquecíveis. Se era só para isto tanta dramatização, foi um completo desperdício de esforço.
Sócrates não cai já, a não ser que, ao contrário do que diz, não tenha assim tanta vontade de governar Portugal. Mas é uma questão de tempo e de outros orçamentos.
Verdadeiramente assustadoras, as palavras de Ricardo Reis, publicadas sábado no seu habitual espaço de opinião no i: "Os especuladores já começaram a atacar a dívida grega e fala-se do risco iminente de bancarrota do país. Se a Grécia cair, Portugal não dura mais que umas semanas." Não se trata de uma sentença de morte da economia portuguesa. O que o professor de Economia da Universidade de Columbia faz, com a coragem que faltou a muitos especialistas, é avisar para o risco - real - que impende sobre Portugal.
A verdade é essa, aquela que ironicamente nos tem sido anunciada pelas agências de rating, que há dois anos foram justamente fustigadas pela responsabilidade que tiveram na crise do subprime. As economias com défices orçamentais elevados e níveis de endividamento descontrolados estão sob uma pressão que pode ser fatal. Na lista aparecem, à cabeça, a Grécia, a Irlanda, a Itália, mas também Portugal, e até o Reino Unido, já que nem Brown com o seu pre-budget conseguiu tranquilizar o mercado. E se, num pesadelo mais mórbido, a Grécia colapsar, cair, sair do euro, o pânico atingirá rapidamente outras economias. Por isso mesmo, julga- -se que Bruxelas tudo fará para evitar essa situação. O mal não seria só grego...
Contudo, mesmo apertando os olhos para tentar evitar os sonhos maus, o susto não se esquece. Os alertas já se fizeram sentir de forma implacável. Sem mais acção e determinação dos governos destes países, as suas notações de rating continuarão sob forte ameaça. O mercado de dívida soberana já acusa alguma saturação, logo alguma fragilidade. Até quando estarão os investidores dispostos a investir em títulos de dívida emitida por Estados soberanos incapazes de transmitir confiança e de convencer o mercado de que os seus planos de combate serão suficientes para inverter a deterioração continuada das finanças públicas e a elevada vulnerabilidade das suas economias?
Portugal, tal como outros países da União Europeia, não estará numa situação tão agreste quanto a da Grécia. O seu principal trunfo ainda será, apesar de tudo, uma maior credibilidade das políticas orçamental e económica. A economia portuguesa também não acumula um passado tão trágico de erros como o grego e, apesar de crítico, o estado das contas públicas em Portugal não é tão devastador quanto o da Grécia. O défice orçamental nacional é de 8%, em contraste com os 12,2% gregos, enquanto a dívida pública é de 84,6%, contra 124,9%.
Mas nem a convicção de que dificilmente a Grécia cairá, nem as vantagens portuguesas facilitarão a vida a José Sócrates e a Teixeira dos Santos. A Irlanda avançou com medidas tão duras como o corte nos salários dos funcionários públicos e nem assim conseguiu aquietar os mercados. O primeiro teste à credibilidade do governo português tardará menos de um mês e será já no Orçamento do Estado para 2010. Pouco tempo depois, seguir-se-á o Programa de Estabilidade e Crescimento, que explicará a Bruxelas como se pretende reduzir o défice para os 3% até 2013. O desafio será convencer o mercado e as agências de rating antes de o veredicto ser anunciado. E neste campeonato, está visto, não há crédulos.
Mário Soares apela aos partidos da oposição e ao governo para que se deixem possuir pelo espírito natalício e façam tudo para evitar uma crise de governabilidade. António Vitorino critica a inacção de Cavaco Silva e diz que o Presidente não pode ficar eternamente fechado numa torre de marfim, devendo explicar quanto antes como é que avalia a estabilidade governativa. Certo e sabido. Mal se fizessem ouvir na Assembleia da República os primeiros estalos na cara do governo, regressariam os sensatos com os seus apelos à prudência e responsabilidade da oposição. E, claro está, ao papel mediador de Cavaco Silva. Faz sentido, é essa a função dos sensatos. Porque, como alertou ontem Soares, no seu habitual espaço de opinião no "Diário Notícias", "se o país caísse numa crise de governabilidade, que viria em acréscimo da crise global aguda em que vivemos, seria um desastre para todos os portugueses".
A crise de governabilidade que tanto se quer evitar já começou e não foi no Parlamento. Faz-se anunciar num país esmagado pelo presente e, como se já não bastasse, também pelo futuro mais próximo. Sócrates só é primeiro-ministro de Portugal porque não havia e, pior, continua a não haver, mais ninguém para o lugar. Sócrates é um primeiro-ministro abominado por pessoas conformadas com a inexistência de alternativa e que também por isso lhe vão reconhecendo cada vez menos capacidade para fazer o que quer que seja, como por exemplo sair à rua ou governar. Quem quer saber de quem é a culpa, se é de José Sócrates, que fez tudo o que dizem que fez, ou se de carrascos que montaram os esquemas perfeitos para o tentar derrubar. Não interessa.
Já é por tudo e por nada. Até o titubeante Passos Coelho, que ora quer TGV, ora não quer, ora defende a privatização da CGD, ora não defende, pesa nas costas de Sócrates. A inexistência de uma alternativa a Sócrates passou a ser também um problema de Sócrates. É também o resultado da falta de confiança no governo e no primeiro- -ministro, do cansaço e desalento de pessoas desejosas de ser governadas. Não, não é só de irritação que se trata, como sugere Mário Soares.
A este país, nem os melhores especialistas da auto-ajuda podem valer. Diz a teoria que não devemos viver agarrados ao passado e muito menos obcecados com o futuro, que devemos concentrar-nos no momento, no agora. Ora, tentemos, nem que seja por um bocadinho. Agora, em Portugal, accionistas do BCP admitem que Vara regresse ao banco como assessor directo de Santos Ferreira, em vez de voltar à administração para não incomodar o Banco de Portugal. Não é possível, tentemos o passado: o governo ocultou um défice superior a 8%. Bem, e quanto ao futuro... O melhor talvez seja seguir o conselho de Mário Soares e desfrutar a quadra do Natal. Até lá, sempre podemos contar com o star quality dos "Ídolos".
Há pouco tempo um banqueiro garantia-me que o único banco português que compraria de olhos fechados - sem antes ter de fazer uma auditoria - seria o BPI. E porquê? "Porque é bem gerido." O momento não foi propício a grandes explicações e a resposta ficou no ar. Mas a confiança no BPI de alguém que conhece a vida dos bancos como ninguém está, obviamente, longe de depender apenas de uma equipa de gestores tecnicamente irrepreensíveis.
Fernando Ulrich até poderia ser o guru da gestão bancária mas nunca seria apenas isso que justificaria a credibilidade do banco, nem é só isso que tem mantido a instituição afastada das operações furacão e faces ocultas.
O que distingue o BPI é a sua liberdade. Não será total - impossível num país onde comem todos da mesma gamela -, mas será maior que noutras instituições financeiras. Essa liberdade sente-se no discurso desabrido de Ulrich e na sua predisposição para a denúncia, mas está longe de nascer da irreverência do presidente executivo do BPI. Não se pode ser livre porque se quer na banca em Portugal, onde a perda de um negócio com uma grande empresa faz muita diferença.
São, sobretudo, os seus accionistas. Estrangeiros, imagine-se. A maioria do capital social do BPI - 67,5% - é detida por espanhóis, brasileiros, angolanos e alemães. Podem ter muitos interesses e servir-se do banco para os satisfazer, como qualquer accionista, mas há uma questão fundamental - a sua sobrevivência não depende do BPI. A vida do La Caixa, do Itaú e da Allianz existe para além do BPI. Mais ainda, a da Santoro, holding de Isabel dos Santos, a filha do presidente angolano, José Eduardo dos Santos. Os interesses, empresariais e políticos destes grupos não se sobrepuseram, pelo menos até agora, aos do banco. A independência dos accionistas do BPI tem sido assim a chave da independência da liderança de Fernando Ulrich e, claro, do próprio BPI.
Como na família, nem sempre se podem escolher os accionistas, mas a verdade é que na banca portuguesa há estruturas accionistas que foram montadas à pressão, à medida dos interesses de uma pessoa ou de um grupo. O BPN é o melhor exemplo de um banco que existiu sobretudo para servir um grupo de accionistas. Os outros clientes da instituição eram paisagem. O resultado está à vista: o seu fundador, Oliveira Costa, está detido, o banco foi nacionalizado e a factura vai ser paga por todos os contribuintes.
Mas também o BCP não tem propriamente motivos de orgulho. Com uma estrutura accionista reconstruída em plena guerra de poder pela liderança do banco, o que sobressai é o peso da dependência de accionistas e de outros grupos empresariais. E o mesmo se pode dizer do BES e da CGD, onde o controlo do Estado facilita ainda mais relações convenientes. Nada mais, afinal, do que a tal dependência da economia portuguesa em relação à banca. O país não seria igual se os accionistas do BCP fossem os mesmos do BPI, mas seria pior?
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