Diz-se do novo governo que vai ser mais pequeno, reformista, que vai ser musculado, de combate, mas também pacifista e com uma forte vocação diplomática. Até pode ser tudo isto, mas não será muito diferente do anterior. E não é preciso muito para explicar porquê. O mundo não mudou depois das legislativas, a crise mundial ainda não passou e o país continua a ter os seus próprios problemas, e não são poucos. Os constrangimentos da economia portuguesa são exactamente os mesmos, pelo que o próximo governo não disporá, antes pelo contrário, de mais meios para enfrentar uma crise que está longe de ter passado e de cuja real gravidade muitos não se terão dado conta. O governo depende menos de si para governar nesta legislatura, tem pela frente um Parlamento com mais poder e contará com um ambiente de imprevisibilidade. Não consegue, tão-pouco, saber quanto tempo vai durar, o que debilita qualquer ímpeto reformista. O PS não ficou de repente repleto de candidatos a ministros competentes e em tempos de minoria é mais difícil atrair os bons. O programa de governo é aquilo que se sabe. E também Sócrates é o mesmo. O primeiro-ministro até pode ser, como diz Manuel Alegre, "uma pessoa de talentos vários", poderá até tornar--se cansativo de tão dialogante, mas ninguém muda tanto em tão pouco tempo. Mesmo perante circunstâncias tão diferentes daquelas a que estivemos habituados nos últimos quatro anos e meio.
Ilusões à parte, que se pode então esperar do próximo governo? Que não desfaça, não estrague. Parece pouco mas não é. Na actual conjuntura, basta um deslize para que qualquer esforço feito se evapore num ápice. E que se pede ao governo de José Sócrates? Pede-se que não sobrecarregue mais os que pagam impostos com pretensas reformas ficais, que acabam por pesar sempre do mesmo lado, que não desperdice um tostão – a simpatia de Bruxelas está prestes a terminar –, que acabe com as suspeitas que recaem sobre o Ministério Público e contribuem para a perigosa ideia de que a justiça é só para alguns, pede-se que se entenda com os professores, porque não há crianças que aprendam com professores zangados, pede-se, afinal, ao primeiro-ministro que satisfaça os desejos, nada transcendentes, dos que vivem neste país. Mas, o que é mais difícil, também se pede que José Sócrates devolva às pessoas a confiança no seu governo, não lhes minta e nunca esqueça que tem o dever e prestar contas.
Os dias são difíceis e não há tolerância para a incompetência e tantos outros defeitos da classe política portuguesa. É que não se pede mesmo nada de especial ao governo de José Sócrates: apenas que governe e se lembre todos os dias de respeitar a confiança que lhe foi entregue nas urnas.
Hoje, ao contrário do que acontecia há 100 anos, os pais já não escolhem apenas o mais dotado dos seus filhos para seguir o liceu. Hoje, os pais têm o dever de dar a todos os seus filhos condições para estudar, nem que para tal seja necessário pedir ajuda do Estado. Esta ajuda é, aliás, conforme sublinhou o Presidente da República, na sexta-feira, durante as comemorações do centenário do antigo Liceu Camões, uma condição indispensável para uma efectiva igualdade de oportunidades no acesso ao ensino. Não há, de facto, comparação, em 100 anos muita coisa mudou para melhor. O Liceu Camões deixou de ser uma escola selectiva à qual apenas tinham acesso os filhos de alguns. Mas o problema do Liceu Camões e da maioria as escolas de hoje já é outro. Não é novo, mas será, porventura, mais difícil de solucionar. As escolas têm um papel activo na reprodução das desigualdades sociais. Ao contrário do que se pensa, a escola não é aquela instituição imparcial que, simplesmente, selecciona os melhores alunos com base em critérios objectivos e na meritocracia. Afinal, o que as escolas fazem, já dizia Pierre Bourdieu, é espalhar os valores, as crenças, os gostos e os códigos da maioria, do grupo dominantes, isto sob a capa de um embrulho de material académico. Por mais inteligentes e endinheirados, só passam os que dispõem dos meios para decifrar estes códigos.
Na "Sociologia da Educação", Bourdieu notabilizou-se, precisamente, por questionar a neutralidade da escola e atribuir-lhe, inclusive, um papel legitimador das desiguldades sociais, quando converte as diferenças de raiz social em diferenças académicas ou de personalidade. O filósofo cortou, aliás, com uma falsa convicção: a de que é o factor económico a principal explicação para as desigualdades escolares. Para Bourdieu, o desempenho de um aluno está muito longe de depender apenas das suas qualidades pessoais, ou do dinheiro dos pais. O que distingue um bom aluno é, sobretudo, a sua "cultura geral", conceito vago onde se incluem as relações sociais e todo o capital cultural da família.
Por mais limitações que se atribuam à teoria de Bordieu, torna-se quase impossível ignorar certas evidências empíricas. De que forma, um aluno, por mais inteligente que seja, estará apto a concorrer numa escola onde se cobram, para além de conhecimentos técnicos, regras de boa-educação, de bem falar ou bem vestir com as quais nunca conviveu antes em casa? Seria possível imaginar relações tão íntimas entre os accionistas da Portugal Telecom e a própria operadora se Nuno Vasconcellos, Ricardo Salgado e Zeinal Bava não se regessem todos pelos mesmos códigos, se não partilhassem todos a mesma linguagem?
O que falta às escolas é serem, isso sim, genuinamente inclusivas. Não basta ao Liceu Camões, e a tantas outras escolas, ser menos selectivo. A liberdade de escolha e a igualdade de oportunidade estão longe de ser a solução para o problema das desigualdades entre alunos.
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