O que corre nas veias dos portugueses? Será mesmo sangue? O despropósito surge porque, no curto espaço de uma semana - num ápice -, o país foi confrontado com um duro plano de austeridade - palavra educada! -, e a vida parece ter continuado como se nada de importante tivesse mudado. O governo que jurou a pés juntos, apenas há seis meses, que não aumentaria impostos juntou-se ao maior partido da oposição, aquele que prometeu que jamais aprovaria medidas que resultassem num aumento da carga fiscal, e anunciou um grave aumento de impostos. Que não poupará ninguém, nem mesmo os mais pobres, que fazem - mesmo! - contas ao preço do pão. Ouviram-se, talvez, uns queixumes a mais, a ladainha de sempre, mas mais nada, como se nada de particularmente relevante tivesse ocorrido nos últimos dias. O que ressoa são as vozes do costume, dos que garantem, sem qualquer ponta de dúvida, que tem de ser assim, que o país não tem saída, que foram Bruxelas, Sarkozy e Merkel que nos impuseram um espartilho mais apertado, e que já nem o governo pode fazer nada, que é o preço a pagar se quisermos dar um futuro melhor aos nossos netos. E também ainda se ouvem os elogios ao esforço de Teixeira dos Santos, à inesperada sensatez de Passos Coelho e à preocupação de Sócrates, que, à última hora, conseguiu poupar as PME com uma facturação inferior a 2 milhões de euros da taxa acrescida de IRC.
É capaz de ser sangue o que nos vai nas veias, mas não deve ser lá grande coisa. Basta ler o o mea culpa de Luís Amado, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, ontem em entrevista ao "Diário Económico": "Ao longo da última década não fizemos o que deveria ter sido feito [...] Deveríamos ter sido mais rápidos na última década a fazer reformas estruturais que garantissem a competitividade da nossa economia sem a alavanca da desvalorização monetária. Esse conjunto de reformas estruturais foi sendo adiado porque tivemos governos relativamente frágeis desde o início do euro." Pois é, a verdade é tão simples. Os governos não fizeram nada, nem os seus, caro ministro de Estado, e agora não há mesmo nada a fazer. Mesmo que o sangue fosse de jeito e chegasse a ferver, não valia a pena. Não há greves, manifestações ou sequer um "direito à indignação fiscal" que nos valha, agora há que trabalhar muito e, pelo meio, tentar gerir danos, perder o menos possível. E, imperioso, nunca esquecer o que se passou, guardar num lugar precioso da memória, o que nos está a acontecer. Este silêncio não pode significar que todos passámos um cheque em branco ao governo, a este e aos que estiverem para vir. Os sacrifícios que agora nos preparamos para aceitar, porque não temos alternativa, devem ser sentidos como uma transfusão de sangue, do mais saudável. Se assim for, estaremos mais vivos para fiscalizar os governos e para lhes exigir melhores políticas. Mudem a Constituição, imponham um limite à alemã para o défice público, entusiasmem-se com o que quiserem, mas preparem-se para um povo de sangue novo. Hoje Sócrates falará ao povo, através de uma entrevista à RTP. Que evite repetir que o país é o campeão do crescimento, é falso, soa a insulto e pode deixar-nos sem pinga de sangue.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.